Comentário Álvaro Domingues: "Deslocações casa-trabalho"

25.01.2016

Passam a vida moer-nos com o tema das deslocações casa-trabalho, um dos tópicos de conversa mais frequentes para falar das mais variadas coisas. A meteorologia também funciona bem neste registo: tentem por exemplo uma conversa sobre esta imagem, começando com “está calor e o céu está a nevoar…, não tarda nada e chove”.

 

Regressando ao primeiro assunto, as deslocações casa-trabalho animam as manhãs da rádio e os fins de tarde com a mesma conversa de todos os dias sobre o tráfego na segunda circular seja ela onde for ou no eixo Norte-Sul; na TV é mais comum a repetição da missa cantada e sermão sobre os automóveis e as pessoas: os automóveis são muito maus porque entopem as estradas, as ruas, cavalgam os passeios para estacionar e contribuem para o efeito de estufa; ao contrário, as pessoas são boas, sobretudo quando socializam nos transportes colectivos.

 

Os automóveis são uma categoria diferente das pessoas porque são impenetráveis e enigmáticos, solitários no seu mundo mecânico a roncar e a moer combustível vá-se lá saber para quê. Ouvindo atentamente, chega-se a perceber que afinal automobilista e ocupante podem ser pessoas dentro de um automóvel. Más pessoas, talvez, porque as boas são apenas pessoas como o Fernando dos heterónimos, escrevem poesia e não foram morar longe de Lisboa. 

 

Já sabemos da potência das metáforas mas será melhor não exagerar e perceber porque é que as pessoas andam de automóvel e porquê que taxando ainda mais os automóveis, se vai infernizar ainda mais a vida àquelas outras pessoas que não tem já mais dinheiro para mais isso. Os ricos, boas ou más pessoas, terão sempre e assim se transforma o enunciado técnico de uma política numa injustiça social.

 

Por que é que certos tecnocratas não percebem que ao preço que está pagar um carro, seguros, combustível, revisões, portagens, pneus, etc., se se investe nele e no seu uso, algumas razões bastante fortes haverá para isso. Pois…, pessoas é uma categoria sociológica muito estranha e politicamente perigosa porque nivela as diferenças todas numa abstracção total.

 

Julgo que as pessoas (essas outras) que construíram esta casa, quando de cá saíram para um país de que nem sequer conheciam a língua, não tinham problemas de deslocação para o trabalho. Todos os dias, sachola, carro de bois, feixes de erva às costas, braçados de couves, carros de mato…, se ia para os campos ou montes por ali ao pé da porta. Fartos de miséria e mau viver, emigraram.

 

Deslocaram-se então para outro país, longe, onde resolveram a sua vida e então já poderiam verdadeiramente ter aqui uma casa nova porque a que deixaram era uma coisa tosca onde o fumo, o vento ou o frio alternavam com facilidade.

 

Compreende-se (todos temos sonhos de regresso a coisas que deixamos), mas não queremos regressar a desconfortos que podemos resolver e que foram uma das causas que nos empurrou para a saída. Porque os seus filhos e netos também organizaram vidas nesses outros países, agora estas casas estão quase sempre fechadas.

 

Então, temos aqui uma questão verdadeiramente nacional pelo comum que é na nossa querida pátria: há gente com distâncias enormes entre a casa e o trabalho que não resolvem isso diariamente com filas infindáveis de automóveis. Fecharam as casas e só por cá aparecem quando calha. É um sossego para os especialistas em tráfego. Alguns estetas, pelo contrário, ficam furiosos com o visual da casa. Quem entende este mundo? Gostarão de caldo verde? Quererão as couves galegas do primeiro plano? 

 

Álvaro Domingues, licenciado em geografia, doutorado em Geografia Humana e professor e investigador na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

TAGS: Comentário , Álvaro Domingues , ordenamento do território
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