Opinião de Álvaro Domingues: Isso que comeis não são ervas, não

12.04.2016

Houve um tempo em que o ordenamento do território e o urbanismo habitavam lugares serenos onde reinava a concórdia entre os técnicos, los expertos, em castelhano, os políticos, sem sombra de pecado, e os cidadãos que gostavam de uns e de outros sem engasgos de maior no seu ruminar quotidiano. O Estado, o dono da obra, zelava pelas coisas públicas, tudo justo e equitativo, tudo no seu lugar, a cidade na cidade, o campo no campo, as ovelhas nos campos, os viadutos por cima, o nevoeiro ao fundo e o sol a fazer sombra; o Estado era um poço de virtude. Os privados, gulosos, queriam negócios e lucros, acenavam com luvas e papéis no Panamá, que lhe fazemos tudo, que fazemos orçamentos e vamos a casa. O Estado, pois sim, fareis concursos, ofertas baratas, cumprimento de prazos, seguros de vida. Os mercados, não confundir com o departamento municipal de feiras e mercados, andavam afinadinhos e regulados na sua vertigem permanente a descair para o caos e para o poço da morte.  

 

Isso era há muito tempo. Entretanto, os técnicos perderam a tramontana entre excessos de burocracia, congelamento cerebral, desacordo científico e dificuldade em perceber o mundo; os políticos esqueceram o pouco que sabiam sobre ética e formaram uma tribo para dançar o vira. Os mercados soltaram-se e pastam sem corda, sem cão, sem pastor, ora no rebanho, ora extraviados por sua conta em qualquer esquina do planeta a mascar dinheiro – globalizaram-se. O nevoeiro espalhou-se pelas cidades e pelos campos, o sol não faz sombra onde fazia. Perdeu-se o livro de instruções para organizar a ordem natural das coisas e cada coisa organiza-se naturalmente como melhor lhe parece. O reino dos céus faliu e a terra enlameou-se. Há quem viva feliz com isto. Há quem, de tanto azedume que se lhe instalou nos neurónios, se acomodou a murmurar dentro de um vício pior que a bílis negra.

 

Porque a realidade é mais insondável que os desígnios dos deuses e o futuro se evapora sempre que se tenta alcançar mesmo que de mansinho como um cordeiro, temos que inventar enganos para viver ou para convencer os outros que sosseguem e que deixem de acreditar nas sereias com cabeça de peixe e pernas de odalisca. O último, xarope doce e tóxico para introduzir no orifício que está no término do intestino grosso, é a Cidade InteligenteSmart City em estrangeiro, expressão compósita auto-significante em que um adjectivo aparentemente simples e problemático ao mesmo tempo, se encosta a um sujeito indeterminado que não se sabe bem o que designa.

 

Cidade Inteligente é uma espécie de playground, uma SimCity ou FarmVille produzida e distribuída por empresas da magia electrónica e habitada por infinitos rebanhos de palavras safe, clean and green, ecotech, running, cycling,  exciting, walkable, liveable community, lifestyle, friendly, smart, wireless, design, etc., cravejada de sensores, identificadores, câmaras, optoelectrónica, microfones,  microprocessadores, sistemas integrados e toda a parafernália de bzidróglios(dispositivo imaginário, instável, multitarefa autoprogramado, inteligente que faz tudo o que se pensar que ele possa fazer; coisa próxima das funcionalidades do mágico da lâmpada de Aladino mas com mais do que três desejos), pessoais, cómodos, baratos, limpos, compactos, eficientes, ubíquos e sustentáveis (claro). Edifícios, redes técnicas, veículos, o que for, comunicarão uns com os outros em conversas numeradas – Big Data in the Internet of Things. Aí se movem cidadãos conectados, quais ciber-organismos expandidos por próteses percorrendo ciber-espaços.

 

A luta pela energia limpa, pela mobilidade, pela fluidez descarbonatada, pelo espaço, vai substituir a luta de classes e os desígnios da justiça social. Se perguntarem por estas duas últimas coisas, dirão que o mundo sempre foi injusto mas que a injustiça pode funcionar melhor; se insistirem, dirão que a tecnologia é para todos, é barata e o Estado deve por no orçamento participativo, comprar e instalar; se insistirem novamente serão questionados acerca da sua vontade de regressarem às cavernas ou simplesmente, pastar. Méééééééééé…rda (shit, na linguagem da Smart City sem o vibrato ovino)

 

Álvaro Domingues é licenciado em geografia, doutorado em Geografia Humana e professor e investigador na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

TAGS: Opinião , Álvaro Domingues , ordenamento do território
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