Opinião de Álvaro Domingues: "Ópio do povo"

22.06.2016

Com a Campanha do Trigo, 1928-38, o Estado Novo mobilizou o Alentejo para uma modernização agrícola sem precedentes. Intensidade tecnológica e de capital, mercado, poder, corporativismo e injustiça fariam o milagre da multiplicação do pão que arrastaria consigo outros negócios, das charruas aos adubos.

 

Há indústrias, dizia Pequito Rebelo do alto do seu poder e do Integralismo Lusitano, «que da agricultura são parentes e nas quais se mostra o primeiro aspecto de uma futura síntese entre o agrarismo e o industrialismo. A indústria dos adubos, por exemplo, é, em certa maneira, o fabrico industrial de uma parte da terra [...]. Se, com a indústria dos adubos, a terra como que se acrescenta, com a moderna metalurgia, com a indústria das máquinas, é como se aumentasse a população agrícola, o trabalho nos campos»[1].

 

Em 1929, quando é lançada a Campanha, a CUF era o mais importante grupo financeiro-industrial do país e grande fornecedor dos adubos químicos para as searas da terra do latifúndio até à exaustão.

 

Para além dos adubos, também os fabricantes e comerciantes de máquinas, tractores ou ceifeiras-debulhadoras, prosperam com o negócio. Dos bancos e agiotas, às moagens (as que resistiram ao proteccionismo do trigo nacional) e aos transportes, todos ganham com o Celeiro de Portugal a bombar sob o comando do regime fascista, do proteccionismo e da organização corporativa. Todos, menos os escravos da terra, trabalhadores de sol a sol na lavoura alentejana.

 

Com as Campanhas do Trigo em breve a região se transformaria numa paisagem económica e tecnológica com a rede de caminho-de-ferro a unir gigantescos silos brancos como catedrais na planície. Desde os romanos que não tinha acontecido tamanho sobressalto.

 

Tão depressa como veio, foi-se, para desgosto salazarento que dizia, invocando Mussolini e a Battaglia del Grano que “o predomínio da cidade é contrário à economia, à saúde e à sociedade. É preciso honrar o campo e dar-lhe as comodidades que a civilização moderna nos oferece: levemos-lhe o telefone, o telégrafo e a telefonia — e respiremos o ar puro e saudável da natureza e das mentalidades dos campos, longe destes sorvedouros de vidas, energias e saúde que são as cidades”[2]

 

Veio depois a revolução, uma Reforma Agrária que não houve e a adesão à União Europeia. O tempo acelerou. Num ápice passou-se da ditadura à democracia, ao Estado Providência, à crise, ao aprofundamento do capitalismo global, ao Estado a finar-se, a população a envelhecer, o cante a património da Humanidade e o montado pelo caminho do chocalho. Entretanto o Alqueva avançou e as terras do Grande Lago até mudam de nome. A Aldeia da Luz está para vender e arrendar a turistas.

 

A lavoura mudou de nome, também; chama-se agro-negócio e na terra de milénios de cereal de sequeiro lavram agora os canos e os canais do regadio multiplicados até ao infinito do labirinto dos tubos da rega gota-a-gota, as geringonças dos pivots de fertirrigação e quimigação com sistemas informatizados de rega variável, os plásticos dos camalhões, as culturas forçadas.

 

Sobre os olivais super-intensivos voam drones a monitorizar as filas das oliveiras quais arbustos topiários; nas vinhas, a paisagem sonora enche-se de estrondos e gritaria aflitiva de aves, gravações guerreiras para espantar estorninhos e outros comedores de uvas. A terra está limpinha e careca à força da quimioterapia do herbicida. Os ratinhos e outros migrantes pobres de outrora, são agora indianos, nepaleses, brasileiros, ucranianos, búlgaros, romenos ou moldavos. Trabalham de sol a sol nas tarefas onde a maquinaria ainda não entrou.

 

A produção a contrato e os investidores estrangeiros estão a transformar o latifúndio em colónia sem colonialismo. Nas rotundas prolifream as metáforas do passado e a nostalgia do paraíso perdido, branco de cal, injusto, autoritário, e multiplicam-se as mondadeiras, as ceifeiras, os pastores, os pipos, as talhas e outros atavios do tempo da agricultura romantizada algures entre o natural e o sobrenatural, entre a terra e os deuses, festas e touradas.

 

Também há papoila e não é Maria. É ópio para escoceses ou australianos. Não é do povo como diziam que era a religião. A religião é o dinheiro, aqui como no planeta e quem perde o amor ao torrão abençoado em que nasceu e em que se criou, fatalmente deixará de amar a pátria, porque o amor a esse cantinho, a que se prendem as mais suaves lembranças, as mais enternecidas recordações, é, das bases em que assenta o patriotismo, a mais legítima e a mais sólida.»[3] Se não acreditas vais para o inferno. Se acreditares, vais na mesma.

 

[1] Pequito Rebelo (1929), A Terra Portuguesa, Lisboa, 1929, pp. 39-40, citado em José Machado Pais et al (1978), Elementos para a história do fascismo nos campos: A Campanha do trigo: 1928-38 (II), Análise Social, vol. XIV (54), 1978-2.°, 321-389.

[2] Discurso de Salazar em 11 de Maio de 1935, citado em José Machado Pais et al (1978), Elementos para a história do fascismo nos campos: A Campanha do trigo: 1928-38 (II), Análise Social, vol. XIV (54), 1978-2.°, 321-389.

[3] Alfredo Pimenta (1935), Por Vila Viçosa a bem da Nação, in Callipole de 31 de Março de 1935, citado em José Machado Pais et al (1978), Elementos para a história do fascismo nos campos: A Campanha do trigo: 1928-38 (II), Análise Social, vol. XIV (54), 1978-2.°, 321-389.

 

Álvaro Domingues é licenciado em geografia, doutorado em Geografia Humana e professor e investigador na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.


Outros artigos do autor em: 
http://www.correiodoporto.pt/category/rua-da-estrada
http://juponline.pt/2016/05/crise-de-identidade/

TAGS: Opinião , Álvaro Domingues , Ordenamento do Território , Alentejo
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