Lourenço Egreja: «Devolvemos o Palácio Pombal à cidade de Lisboa»

Entrevista

30.04.2014

Era uma vez um palácio abandonado no coração de Lisboa. Até que um dia os mentores de um projecto artístico viram na antiga residência do Marquês de Pombal, no Bairro Alto, o local ideal para o desenvolver. E foi assim que há cinco anos o espaço foi devolvido à cidade. É neste edifício de salas amplas, sem corredores e sem ângulos de 90 graus, que vive «Carpe Diem Arte e Pesquisa», um centro cultural de promoção da cultura contemporânea. É o palácio o verdadeiro «curador do projecto, aquele que define as regras do jogo», admite o director artístico, Lourenço Egreja.

 

«Carpe Diem Arte e Pesquisa» foi um projecto pensado para o Palácio Pombal ou chegou aqui por acaso?

Em 2009 o curador Paulo Reis [1960-2011] desenhou um concurso para os apoios da Direcção Geral das Artes, no qual desenvolveu um projecto de residências e convidou alguns artistas. Fui convidado para fazer o projecto. Nessa altura o espaço ainda não estava pensado. Ao falar com vários agentes em Lisboa percebeu-se que o palácio estava disponível. Viemos visitá-lo com o Miguel Honrado da EGEAC [entidade que gere o palácio, que é propriedade da Câmara de Lisboa]. Perguntaram se estava nos nossos horizontes desenvolver um projecto aqui e dissemos que sim.

 

O projecto nasceu portanto à luz da possibilidade de virem para cá…

Sim. A partir do momento em que cá chegámos toda a curadoria se voltou para o edifício. Tendo eu uma experiência já palaciana desde o meu primeiro estágio [no Palácio da Vila, em Sintra] foi natural perceber lógicas de circulação, o que é público e privado, lógicas de produção e lógicas de conforto. Tudo isto num edifício que não tinha água e electricidade. Desenvolvemos todas as ideias teóricas que tínhamos para o edifício mas na realidade o edifício voltou-se contra nós. O curador deste projecto é o palácio. Nós somos só os seus assistentes. O palácio é que define as regras do jogo.

 

E até que ponto o estado de degradação do edifício condiciona o projecto?

Prefiro colocar as coisas de uma outra forma: mais do que limitações o estado do edifício coloca-nos desafios.

 

Qual foi o desafio mais difícil de superar?

O preconceito das pessoas em relação ao estado do edifício. Repare que temos um projecto na cidade que não tem como objectivo a cristalização do edifício no sentido de torná-lo imaculado, com paredes brancas. Assumimo-lo tal como ele está e produzimos conteúdos.

 

Nada adiantaria ao projecto se fossem gastos milhões na recuperação do palácio?

Não até porque esses milhões têm que ser justificados. Ficaria uma estalactite, uma coisa imaculada. Não é nosso objectivo recuperar o espaço. É dar-lhe vida. Fazer espaços brancos, pintar por cima, criar espaços assépticos para criação e desenvolvimento de arte contemporânea talvez não se aplique aqui. Faz sentido tal como está.

 

Não houve trabalhos de embelezamento mas houve trabalhos ao nível da estrutura…

Foi o trabalho de consolidação de fachada. A intervenção foi paga pela câmara para que o edifício não caísse. Mas também houve trabalhos de limpeza. Havia muito entulho. Estivemos seis meses a preparar o edifício. A definir os espaços. O edifício é muito confuso porque foi construído com base noutros que já cá estavam. Se olhar para a planta vê dois edifícios ou três. Há paredes internas com grande grossura que provam isso. Não é um edifício simétrico: escadaria; esquerda; direita; corredores; como Mafra.

 

Este estilo favorece a criação artística…

Sim. O desafio aqui é encontrar uma fórmula e um programa que seja sustentável. Que não seja pedir dinheiro ao Estado para restaurar, o que é um movimento clássico. Portugal tem imensos exemplos de centros culturais que foram construídos e que não têm programação. São, como dizem os espanhóis, «contenidos incontinentes», ou seja, espaços sem programação. Noutras cidades do mundo, como Veneza, Paris ou Londres, muitos espaços culturais são estruturas antigas. Em Portugal o que acabaram por ser? Hospitais, departamentos de finanças, ministérios, correios. Se calhar agora é a altura da arte ou a gestão da arte ou a cultura entrar nas estruturas e dar-lhes outra dinâmica. Primeiro há que desenvolver a programação e depois pensa-se no resto. Já estamos aqui há cinco anos. O programa curatorial já está consolidado…

 

Com exposições regulares?

Temos três grandes exposições por ano com cinco ou seis artistas além de todas a outras actividades, como conferências, masterclass cursos de fotografia e lançamentos de livros.

 

Superou as suas expectativas a forma como tem decorrido o projecto?

Sim. Começámos com três artistas: João Tabarra, Nuno Sousa Vieira e Costa Vece. Agora temos mais de 150. Promovemos exposições lá fora e temos o projecto dos «Múltiplos», edições limitadas de obras (ver caixa).

 

O EDIFÍCIO SEM CORREDORES

 

Este espaço é propriedade da câmara e já esteve à venda. Por que razão acha que tem resistido ao apetite imobiliário?

Acho que pela característica de quem o fez e pela tipologia do edifício. Quem o fez foi o Marquês de Pombal. Se alguém toca neste edifício o Marquês vai rebolar na campa ou então vai haver uma maldição (risos)… Na verdade temos um edifício que se apresenta pelos seus tectos de estuque que estão protegidos pelo IGESPAR. O que se faz com salas de 100 metros quadrados? O principal interessado será a indústria hoteleira. Isto é uma caixa de pandora. Temos paredes de vários tempos. Não me atreveria a mexer nelas. Há paredes do século XVI, paredes do século XVIII e XIX. Se se começa a mexer por necessidades do século XXI não sabemos o que poderá acontecer…

 

Não receia que o projecto fique sem casa?

É um receio. Mas não há nada que possa fazer. Nós somos fabricantes de conteúdos. Se for necessário vamos para outro sítio. O que acho que foi interessante foi que conseguir consolidar um programa com o edifício e ao mesmo tempo devolver o edifício à cidade porque estava fechado. Um visitante pode conhecer o palácio se quiser, pode ver arte contemporânea se quiser e pode ir visitar o jardim se quiser. Há cinco anos que estamos abertos ao público de quarta a sábado. As pessoas podem vir cá sem pagar entrada. Qualquer outro tipo de programa poderá limitar o acesso do público ao palácio.

 

Que particularidade arquitectónica mais lhe agrada neste edifício?

Acho fascinante o edifício não ter corredores. Faz parte de um tipo de arquitectura pré modernista. Trabalhar nestes moldes é fantástico. Estamos a trabalhar no século XXI numa estrutura que foi idealizada e pensada no século XVIII. Esta fusão de conceitos gera uma nova estética. Se calhar só daqui a 50 anos se poderá confirmar. É uma estética que tem que ver com obras que saem a partir de uma reflexão acerca do palácio. Uma reflexão acerca de um edifício sem corredores. Sala após sala, sala após sala. Estamos numa ponta do edifício e vemos a outra. É uma experiência fascinante. Nós estamos a circular em tipologias de circulação que não são as do século XXI. Tudo isto implica respeitar o edifício e não lutar contra ele. É quase um exercício de cidadania. Implica perceber que quando se projecta um vídeo é raro que a lente esteja paralela à parede porque não há 90 graus em lado nenhum. Está sempre tudo ligeiramente para ali ou para aqui. Ou então é o chão está torto.

 

Ana Santiago

 

Cinquenta visitantes por dia

 

Todos os dias, de quarta a sábado, o número 79 da Rua de O Século, no Bairro Alto, Lisboa, sede do projecto «Carpe Diem Arte e Pesquisa» recebe 50 visitantes. «É um tipo de visitante informado, interessado, que sabe exactamente o que está à procura», explica o director artístico, Lourenço Egreja.

 

A associação sem fins lucrativos vive de receitas públicas e privadas. O orçamento inicial não complementava a manutenção de um edifício com quatro mil metros quadrados. «Estávamos a retirar dinheiro da programação para a preservação do edifício», ilustra Lourenço Egreja. A necessidade aguçou o engenho e surgiu o projecto dos Múltiplos (edições limitada de obras), o que permitiu que o projecto encaixasse algum dinheiro que é canalizado directamente para pagar as contas.

 

Os «Múltiplos» estão à venda na loja e on line mas são também promovidos no estrangeiro. «É um projecto muito portátil. As imagens vão numa caixinha pelo mundo todo. Tivemos uma exposição em Londres. E agora segue-se Barcelona, Açores, Nova Iorque, Buenos Aires e por aí em diante», explica.

 

Carpe Diem, além de um projecto curatorial, tem também uma forte componente educacional. Não de visitas guiadas mas mais alargada. «Tivemos cá duas escolas americanas de arquitectura. Estudantes de 22 anos nos Estados Unidos raramente têm oportunidade de estar um mês dentro de um edifício do século XVIII. Talvez isso seja um laboratório. Um laboratório onde se experimentam ideias. Experimentam-se materiais e luz. Uma luz que muda sazonalmente». E, pergunta-se finalmente, porquê Carpe Diem? Porque é a «arte do momento, é a arte que está a ser feita agora».

TAGS: Lourenço Egreja , Carpe Diem Arte e Pesquisa , Palácio Pombal
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