Opinião de Álvaro Domingues: Património e electrónica

22.04.2016

Quando se fala de património e não é a conversa vaporosa do turismo e das suas atracções em modo zaping ou um episódio agudo de euforia e autoestima, o tema é de uma tristeza enjoativa. Que está a perder-se, arruinado, deixado aos ratos e ao musgo, esfarelado, descaracterizado e outros adjectivos em marcha acelerada para o grande cataclismo cósmico.

 

É preciso mudar o enredo. O que se passa é um problema de sobreabundância. Alain Bourdin [1] nos seus primeiros escritos sobre as invenções constantes do património, alerta para a inversão de sentido que pode causar esta deriva de tudo patrimonializar, sabe-se lá porquê, talvez por medo de esquecimento do passado (todo?), por se desconfiar que, quem sabe, haja nesse baú respostas para o presente ou para o futuro, ou qualquer outra sintomatologia daquelas que nos estão constantemente a situar numa eterna cadeia que vai do início ao fim dos tempos e assim será preenchida a nossa insignificância.

 

A inversão de sentido significa que de coisa excepcional e de grande valor, o património passa para um estado de obesidade mórbida, abundante que diminui e relativiza valores, banaliza e torna a conservação e a gestão uma verdadeira impossibilidade.

 

É o complexo de Noé de que já falava Françoise Choay - a arca que se torna minúscula para tudo guardar e a tarefa constantemente revista e aumentada, desmedida e impossível de fazer. Virá o dilúvio já com dois metros de água e ainda andará Noé a encomendar projectos para aumentar a arca, a correr para os bancos por não ter dinheiro para pagar obras a mais, e a acrescentar linhas no Exel para novas recolhas que não param de lhe cair no SMS. Por deus! Entretanto a coisa vai tão depressa que o próprio passado já se tornou obsoleto antes mesmo de se conseguir saber o que era e para que servia. Por não tomar as doses regulares de amnésia enriquecida, a memória vai explodir.

 

É muito património: rural, urbano, arquitectónico, material, natural, imaterial, histórico, etnográfico, industrial, paisagístico, gastronómico, construído, destruído, gratinado, aquecido, requentado, musical e ainda falta mais do dobro elevado a uma potência com mais de três dígitos.

 

Por falar em dígitos, talvez não fosse mau digitalizar o património para o conservar. Ficava guardado numa public cloud em 3D a cores e alta definição, sustentável e resiliente com acesso livre pelo facebook. Podia-se imprimir se fosse necessário.

 

Que paz admirável reina neste lugar. Na ala do claustro de um convento que há muito perdeu posses e meios de existência, descansa um carro de bois (de facto, era de vacas, e não é por causa destas modernices do género e do politicamente correcto a esse respeito, é que era mesmo) que deixou de servir e agora já tem a patine aplicada pelo alívio das pombas (e dos pombos) que por aqui se abrigam.

 

Lá ao fundo, estacionou um tractor, sucedâneo motorizado do carro que dispensou as vacas dos trabalhos forçados e as cambiou na energia aumentada dos cavalos de potência do motor. O lajedo é solene; as colunas e os arcos em granito aparelhado conferem aquele ar sólido que transpira das arquitecturas clássicas que há nas boas casas.

 

O reboco esfolado do muro está suficientemente derretido e sofisticado para marcar o tempo e a linhagem e deixa o acesso livre a uns abrigos de fendas e buracos que as aranhas e outras bichezas miúdas não desdenharão. As paletes, como a arte povera, conferem a esta ambiência um je ne sais quoi de despojamento estrutural, seco, aprumado e paralelo. Para o tubo de plástico encurvado não encontro termo técnico em estrangeiro, talvez object trouvé, para seguir em francês distinto e não cair na parolice cosmopolita electrónica do portuguesing do parágrafo anterior.

 

Creio que é tudo. Se a máquina do tempo funcionasse tão bem como os tractores, podiam vir os monges cantar as matinas.

 

[1] Alain BOURDIN (1984), Le patrimoine réinventé, Paris: PUF, coll. Espace et liberté.

 

Álvaro Domingues é licenciado em geografia, doutorado em Geografia Humana e professor e investigador na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

TAGS: Opinião , Álvaro Domingues , ordenamento do território
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