Opinião João Nunes:"A calçada de Lisboa"

09.11.2015


Tràs los fuertes barrotes la pantera

Repetirá el monótono camino

Que es ( pero no lo sabe) su destino

 

JLBorges

 

 

O Turismo contemporâneo foi construído na sequência de uma das mais generosas ambições humanas, a do conhecimento dos outros e do distante, construído a partir da vulgarização sucessivamente mais abrangente de uma pratica  inicialmente reservada às elites, fundamental para a construção de uma consciência do Mundo e de si mesmos, consciência essa que era de tal forma considerada essencial para a construção  de cada um que fazia com que fosse o " Grand Tour" obrigatório para a formação de qualquer jovem abastado europeu dos últimos três séculos.

 

Desde sempre, e porque já no início o Turismo representava, ao mesmo tempo, a pesquisa sincera e humilde de conhecimento e a ostentação da possibilidade de o fazer, o Turismo encerra, dentro de si mesmo, uma dimensão generosa e construtiva, crucial para a construção de cada um e  para a construção de uma dimensão humana pelo estabelecimento concreto de relações entre pessoas, combatendo o medo e a ignorância que são os alicerces da intolerância e do racismo, e uma dimensão mesquinha e perversa, feita de aparência e de consumo, de captura e digestão de imagens, objectos, histórias e costumes, tomados todos eles como indiferentes itens a coleccionar sem um verdadeiro interesse pelo seu significado para além da satisfação de um apetite predador de coisas e sítios.

 

As cidades, reciprocamente, ou se expõem tranquilas à curiosidade dos outros, aceitando o interesse e a visita como peças para a construção da ideia de uma Grande Humanidade, ou respondem à fome predadora com uma oferta de si mesmas como objectos de consumo, reinventando-se tantas vezes quantas aquelas que acreditam conseguir vender-se.

A confusão entre o sucesso turístico de uma Cidade como resultado do reconhecimento das suas excepcionais qualidades com o sucesso económico das actividades turísticas, e a construção de que as duas coisas são uma mesma coisa constitui um erro tão frequente quanto terrível e destruidor. 

 

De facto, a segunda é uma consequência da especulação sobre a primeira, frequentemente movida de forma insustentável por forças a esta completamente alheias e capazes de a por em perigo em nome de um bom resultado económico.

 

E, de repente, aquilo que constituiu as qualidades que estão na origem do interesse das pessoas pela Cidade, pode tornar-se um tropeço para as actividades turísticas que sobre esse interesse se desenvolveram ou um incómodo à mais fácil exploração desses recursos.

 

A Calçada de Lisboa, as suas texturas, os seus desenhos, os seus brilhos quando molhadas de chuva ou de orvalhos matinais ou quando tangidas pela maravilhosa luz de Lisboa, continuamente polidas pelos passos quotidianos de milhares de pessoas, é um dos ingredientes fundamentais da identidade da Cidade.

 

O absurdo do seu detalhe e da intensidade do trabalho manual necessário para a fazer, o aparente despropósito da atribuição de tão grande interesse ao humilde universo do chão que pisamos, do chão comum da cidade, a matéria, o recorte das juntas, as micro-ondulações que o seu pequeno módulo propicia, a sua temperatura e resplandecente luz, todas são qualidades que ao mais insensível turista não passam despercebidas justificando interessadas vontades de saber um pouco mais, de estudar um pouco, de procurar razões e respostas que, explicando a Calçada, nos explicam também a nós próprios.

 

A Calçada de Lisboa é uma face tão fundamental da nossa identidade que deveria ser monumentalizada no seu conjunto, enquanto prática, história, matéria e imagem, celebrada a sua prática através de escolas de produção e de assentamento, desenvolvidas as suas qualidades através de linhas de investigação que estudassem origens, passados e futuros, divulgada e protegida pelo nosso município como elemento essencial da nossa identidade, da cultura de Lisboa.

 

Mas em vez disso, e porque escorrega nos primeiros dias de chuva do outono, é perseguida como criminosa pelo próprio município que a deveria proteger.

 

A substituição da Calçada de Lisboa por outros materiais de pavimentação põe em risco um aspecto fundamental da Cidade, e por mais antiderrapantes que esses materiais consigam ser, nunca serão a Calçada de Lisboa.

Promova-se o debate aberto sobre este assunto antes que o processo de substituição que, insidiosamente, já começou, de repente produza de forma evidente a temerosa alteração, e, como diz o fado, seja tarde demais.

 

João Nunes é arquitecto paisagista, professor universitário no Instituto Superior de Agronomia e fundador e director da PROAP

TAGS: opinião , João Nunes , calçada , Lisboa
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